Ter nas mãos uma receita e autorização para retirada de medicamentos não tem sido suficiente para pacientes que buscam por muitos dos remédios que integram o programa Farmácia de Todos, do governo de Minas. Nesse setor, que prevê a entrega das fórmulas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), dificuldades financeiras enfrentadas pelo estado, atrasos de fornecedores nas entregas e licitações fracassadas têm deixado os estoques em falta para 18% dos medicamentos, indicados para mais de 50 doenças. A lista inclui enfermidades em que a falta de medicação pode resultar em agravamento do quadro do paciente, a exemplo de diabetes, hepatites, mal de Parkinson, asma, epilepsia, doença de Crohn, autismo e mal de Alzheimer (veja arte).
O déficit, que chegou a 16% em 2015 e a 17% no ano passado, corresponde atualmente à falta de 64 itens em uma relação de 355 – são 63 medicamentos a menos entre os 225 classificados como especializados, e um a menos na relação dos 130 considerados estratégicos. O diagnóstico de falta dos produtos coincide com a criação, pelo Ministério da Saúde, da Base Nacional de Dados da Assistência Farmacêutica, anunciada no fim de outubro, para permitir melhor planejamento para compra, controle da data de validade e remanejamentos, com possibilidade de evitar desperdícios de até 30%.
Em Minas, a baixa nas prateleiras tem feito muita gente sair de mãos vazias e com a cabeça cheia de preocupação da farmácia pública mantida pela Secretaria de Estado de Saúde no Bairro Santo Agostinho, em Belo Horizonte. Sem os medicamentos, há quem precise interromper o tratamento, diante da impossibilidade de pagar pelas fórmulas. “Saí de Ribeirão das Neves hoje, peguei três ônibus para chegar aqui e acabei de ser informado de que o medicamento que vim buscar está em falta e sem previsão de ser reposto”, contou o vigilante Maurício Rodrigues Garcia, de 49 anos, que esteve na farmácia do governo do estado em busca de um item para o quadro de insuficiência pulmonar que a mãe dele enfrenta.
"O farmacêutico sofre com esse déficit, porque não consegue suprir a carência do fornecimento"
Danyella Domingues, assessora técnica do Conselho Regional de Farmácia
O vigilante conta que o distúrbio foi diagnosticado há mais de seis meses. Após a consulta médica, a mãe de Maurício recebeu uma amostra grátis, suficiente para 30 dias. “Demoramos quase quatro meses para conseguir a liberação de retirada do remédio pelo SUS, e agora que cheguei aqui está em falta”, disse. Ele reconhece a importância do programa, mas não deixa de comentar a falta do produto. “É uma ação muito importante, sem dúvida, porque muita gente, como nós, não tem condições financeiras de comprar medicamentos, muitos tão caros. Mas essa falta mostra que há um descaso com a população”, avalia.
Os desafios da assistência farmacêutica em Minas têm sido pauta de encontros de representantes da Secretaria de Estado da Saúde com entidades ligadas ao setor. De acordo com a assessora técnica do Conselho Regional de Farmácia, Danyella Domingues, o órgão tem participado de alguns desses debates. Ela afirma que o problema se agravou neste semestre, com cada vez mais casos de falta de medicamentos chegando à entidade. “O farmacêutico sofre com esse déficit, porque não consegue suprir a carência do fornecimento. Temos tentado estimular a classe farmacêutica atuante no sistema público para ações de cuidado em saúde que sejam capazes de melhorar o acompanhamento do estado de saúde dos pacientes desassistidos”, afirma Danyella.
Ela ressalta, no entanto, que diante do quadro de déficit chega a ser impossível a manutenção da saúde, especialmente em casos de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e cardiovasculares. “Essa situação, além de trazer um dano enorme ao paciente, gera custos muito mais altos para o sistema de saúde, uma vez que, com o agravamento do quadro dessas pessoas, serviços muito mais dispendiosos e de estrutura muito mais complexa passam a ser necessários”, afirma a assessora.
DIAGNÓSTICO A Secretaria de Estado da Saúde informa que alguns dos medicamentos podem apresentar maior dificuldade de aquisição em virtude de problemas de produção, falta de matéria-prima ou dificuldades de registro, a exemplo do Danazol 100mg, para endometriose. E que em outros casos pode não haver interessados no pregão para compra, como o medicamento Clobetasol 0,5mg/g solução capilar, para psoríase. “Essas situações ocorrem todos os anos e fogem da governabilidade do estado”, afirma a pasta, em nota.
Porém, a Saúde estadual sustenta que a atual situação de déficit é atípica e tem como origem, principalmente, a crise financeira enfrentada pelo estado. Medicamentos, como Amantadina 100mg (usado para doença de
Parkinson), Gabapentina 300mg (antiepilético) e Isotretinoína 10mg (formas graves de acne), estão em falta por pendência financeira. “Conforme Decreto 47.101, de 5 de dezembro de 2016, o estado de Minas Gerais tem passado por um momento de calamidade financeira, o que tem impactado no processo de pagamento a fornecedores, os quais não efetivam a entrega dos itens até que o pagamento seja regularizado”, diz a secretaria, ressaltando que tem se esforçado para restabelecer o estoque. “A secretaria tem trabalhado para intervir nessas questões, entendendo que é de suma importância o fornecimento regular dos medicamentos aos cidadãos mineiros com a maior brevidade possível”, acrescenta.
Sobre a Base Nacional de Dados da Assistência Farmacêutica criada pelo Ministério da Saúde, a pasta informa que usa métodos eficientes para a gestão dos medicamentos desde 2009, e que não haverá mudanças significativas nesse aspecto. No estado, o processo é feito por meio de um sistema informatizado, planejado exclusivamente para a área, o Sistema Integrado de Gerenciamento da Assistência Farmacêutica.
Também por meio de nota, o Ministério da Saúde informou que os repasses financeiros para compra de medicamentos em Minas Gerais se encontram regulares.
Além da falta de medicamentos, outra questão desafia a saúde pública no estado e divide opiniões: a judicialização para acesso a produtos farmacêuticos. Ações na Justiça são impetradas quando o usuário pleiteia remédios não padronizados pelo SUS ou que se encontram em falta, para que o poder público seja obrigado fornecê-los. De acordo com a SES, esse tipo de ação soma de 70% a 80% do valor total gasto de modo geral no Núcleo de Atendimento à Judicialização da Saúde. Do orçamento de R$ 3,2 bilhões previsto no Fundo Estadual de Saúde para 2017, o valor empenhado para medicamentos referentes a decisões judiciais somava R$ 143,6 milhões até o último dia 9. A Secretaria de Estado da Saúde defende o respeito à fila e alerta que, quando alguém entra na Justiça para obter um tratamento específico, recursos coletivos acabam destinados a um único caso, o que pode comprometer a gestão de verbas.
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